22 de abril de 2010

Plantão




Cansado. Muito cansado. Diante dessa estafa que fui acometido informo que, excepcionalmente hoje, não postarei a parte 4/6 que irá estar aqui disponibilizada amanhã, juntamente com a parte 5/6.

Obrigado aos milhares de 3 ou 4 leitores do blog, e agradeço a compreensão.

21 de abril de 2010

Nada é por acaso


Parte 3/6

Com 3 quilos e 400 gramas, João Paulo veio ao mundo.

Aos gritos e choros, o Dr. Silas tratou de entregar aquele pequeno ser nos colos de sua mãe Soraide, ao final do parto normal. Estava ali em bebê perfeito, forte e com muita saúde. O primogênito de Américo e Soraide só vinha coroar toda uma história de amor que havia se iniciado anos atrás, nos bancos de um colégio.

Por conta da gravidez, os planos de trabalho tiveram que ser suspensos, mas não interrompidos. Era momento de cuidar do primeiro filho que estava por vir e a situação de Soraide e Américo permitia que ela pudesse esperar um pouco mais para começar a trabalhar.

O período de gravidez de Soraide foi muito tranquilo, porém não menos preocupante. Os constantes enjoos e algumas pequenas quedas de pressão acabaram por fazer parte do cotidiano da família. O que ninguém esperava, era que aquela aparente tranquilidade estava sendo colocada em xeque.

Com quase 9 meses de gestação, Soraide foi acometida por fortes dores lombares. Fato absolutamente normal se não fosse por um detalhe: durante todo o período de gravidez, a mãe de João Paulo não havia sentido nenhuma dor sequer.

Mãe olha ali”, apontava Soraide a um pequeno urso de pelúcia que segurava um ramalhete de rosas e que escorria juntamente com a água da chuva, quintal a fora. “Eu não sei o que aconteceu, mas depois de chutar aquele ursinho com as rosas que estavam na minha porta, comecei a sentir essas dores”.

D. Zoca, uma fervorosa religiosa, captou o sinal. Mais do que depressa, pediu para chamar Calu, seu filho mais velho. Com certa dificuldade, Soraide foi colocada dentro do Bandeirantes da família com destino à casa do “Seu Teles”, um dos trabalhadores da mineradora de Muro Quadrado.

Tiveram que esperar por alguns momentos. “Seu Teles” tinha acabado de chegar do serviço e, suado, se refrescava com um copo de água. Já na sala, perguntou o que tinha acontecido, quando D. Zoca explicou. Soraide, até então, não estava entendendo nada. Não era mais fácil falar com Dr. Silas? D. Zoca, na serenidade de sua sabedoria, afirmava que existem coisas em que o mundo humano se dobra ao mundo espiritual.

Seu Teles pediu para que todos ficassem na sala, enquanto ele e Soraide entraram num pequeno altar, montado nos fundos de sua casa. O altar era lindo, cheio de imagens santas, velas e crucifixos, mostrando a forte devoção religiosa daquele senhor.

Um momento de profunda oração se iniciava. Soraide, não sabia rezar. Apenas fechou os olhos e confiou. Sentada numa cadeira de fios, inquieta, balançava as pernas que insistiam em doer. Talvez, pelo nervosismo de não saber o que estava acontecendo. Talvez, pela experiência espiritual que estaria prestes a iniciar.

A medida que as orações se intensificavam, as dores de Soraide aumentavam na mesma proporção. Seu Teles, ajoelhado no altar dedicado a Nossa Senhora Aparecida, rezava fervorosamente segurando um pequeno ramalhete amarrado com cordas de cipó.

As orações ficavam mais fortes. As dores também. Soraide ficou com medo e chorou. O choro fez com que Calu se preocupasse lá do lado de fora, mas D. Zoca o segurava pelo braço e dizia, calmamente: “confia, meu filho”.

Seu Teles parecia estar mais suado em suas orações do que quando realizava seus trabalhos na mineradora. Soraide já não conseguia mais ficar com os olhos fechados. O choro já era ouvido por toda a vizinhança que começava a se aglomerar na frente da casa de Seu Teles. “O que está acontecendo?”, perguntavam os curiosos vizinhos.

Como num acesso de fúria, Seu Teles rasga violentamente aquele ramalhete que estava em suas mãos e após se prostrar ao chão, se cala, respirando ofegantemente. Soraide já não chora; apenas murmura. A “platéia” fora da casa ficou curiosa com o desfecho final. E um suave aroma de jasmim foi sentido por todos os presentes. As dores de Soraide não existiam mais.

Seu Teles chamou para a sala onde se encontrava juntamente com Soraide, D. Zoca, Calu e Américo que tinha acabado de chegar depois do trabalho, e deu o “diagnóstico”. “Minha filha, existem pessoas que querem que você tenha muita dificuldade em seu parto. Esse trabalho que foi feito, foi para que você perdesse seu filho na mesa da maternidade. Mas fique tranquila. Nossa Senhora interviu e você terá um parto abençoado. Siga em paz. E que Deus a acompanhe e abençoe a toda sua família.

Américo e Soraide não sabiam o que levava a pessoas a cometerem esse tipo de atrocidade. Que mal eles haviam feito? Qual era o erro cometido? O de serem felizes? O de se amarem? A inveja e outros tantos sentimentos a ela atrelados havia dado as caras naquela família, mas a primeira batalha já estava ganha.

Salmos, 90 (91)

1. Tu que estás sob a proteção do Altíssimo e moras à sombra do Onipotente, // 2. dize ao SENHOR: “Meu refúgio, minha fortaleza, meu Deus, em quem confio”. // 3. § Ele te livrará do laço do caçador, da peste funesta;// 4. ele te cobrirá com suas penas, sob suas asas encontrarás refúgio. Sua fidelidade te servirá de escudo e couraça.// 5. Não temerás os terrores da noite nem a flecha que voa de dia,// 6. nem a peste que vagueia nas trevas, nem a epidemia que devasta ao meio dia.// 7. § Cairão mil ao teu lado e dez mil à tua direita; mas nada te poderá atingir.// 8. Basta que olhes com teus olhos, verás o castigo dos ímpios.// 9. Pois teu refúgio é o SENHOR; fizeste do Altíssimo tua morada.// 10. Não poderá te fazer mal a desgraça, nenhuma praga cairá sobre tua tenda.// 11. Pois ele dará ordem a seus anjos para te guardarem em todos os teus passos.// 12. Em suas mãos te levarão para que teu pé não tropece em nenhuma pedra.// 13. Caminharás sobre a cobra e a víbora, pisarás sobre leões e dragões.// 14. § “Eu o salvarei, porque a mim se confiou; eu o exaltarei, pois conhece meu nome.// 15. Ele me invocará, e lhe darei resposta; perto dele estarei na desgraça, vou salvá-lo e torná-lo glorioso.// 16. Vou saciá-lo com longos dias e lhe mostrarei minha salvação”.

20 de abril de 2010

Nada é por acaso


Parte 2/6

Américo e Soraide passaram de meros desconhecidos, a amigos. Amigos na perfeita acepção do termo. Amizade fiel, duradoura e que acabou despertando o ciúme de muitos.

Elas, porque sabiam que aquele branquelo russo não mais atendia a todos de maneira igual e atenciosa. Eles, porque Soraide estava sabendo contornar bem a sua timidez e que se entregava aos encantos do “gringo”.

O tempo foi passando, a cumplicidade aumentando e por ironia do destino, D. Zoca, mãe de Soraide, a mesma que recepcionou a família de Américo quando chegaram em Mundo Quadrado, foi escolhida para ser a chef do banquete montado para celebrar aquele noivado que tinha iniciado logo após o término dos estudos do colegial.

Era uma nova fase. Novos tempos. E a vida parecia escancarar as portas para o casal recém formado. Américo entrou na faculdade de Relações Políticas Filosóficas. Soraide era caloura de Agronomia.

Projetos, sonhos, incertezas, certezas, dúvidas, prazeres, alegria, tristezas... uma cachoeira de sentimentos envolveu aquele casal que parecia ter sido feito um para o outro. As pessoas se perguntavam como poderia haver tamanha cumplicidade naqueles jovens. Estavam felizes e não faziam questão de esconder isso de ninguém.

Agora formados, após o período de faculdade em que estudaram na capital, Mundo Quadrado se tornara pequeno. Era preciso alçar novos voos, novas conquistas gritavam para serem atingidas. Metas, objetivos, planos. Tudo estrategicamente alinhado.

Américo era um perfeccionista e Soraide sabia que poderia confiar no que era discutido e planejado. O mundo abria as suas portas e as trincheiras da vida esperavam pacientemente para delimitar território.

Sim, a vida definitivamente começava para aquele filho de russos e a filha de trabalhadores rurais. Mas o cenário era outro. As dificuldades que não existiam, agora batem à porta. Aquele casal de noivos já não existia mais. Agora, já eram marido e mulher. Formados. Mas o que fazer agora?

O mundo passava por uma grave crise financeira. As bolsas asiáticas haviam quebrado e a recessão causou um grande impacto na economia mundial. As empresas fecharam e o mercado de trabalho era extremamente escasso.

As economias dos pais de Soraide e Américo não mais conseguiam cobrir o custo de vida do casal. Outra alternativa não restou, a não ser recolher a bagagem e voltar para Mundo Quadrado.

Tristeza? Talvez! Mas Américo e Soraide sempre tiravam lições das dificuldades enfrentadas. “Para tudo na vida, sempre existe o lado positivo”, filosofava Soraia. Américo concordava. Afinal, havia saído do distante país gélido e encontrado, do outro lado do mundo, uma oportunidade de recomeço e o amor da sua vida. Agora, era Américo quem filosofava: “Toda a mudança é fecunda!”

As dificuldades pareciam pairar sobre a vida daquele casal, mas a alegria e a cumplicidade de ambos estavam blindadas.

Incrível era constatar que enquanto havia pessoas desesperadas por estarem perdendo todos os seus bens e economias, Américo e Soraide estavam felizes. Preocupados, era óbvio. Mas felizes. Uma felicidade contagiante. Blindada. Sincera.

Américo, enfim, conseguiu um emprego. Uma das empresas de minério que existia em Mundo Quadrado estava precisando, pasmem, de um tradutor russo. Uma grande quantidade de bauxita havia sido encomendada por um consórcio de empresas soviéticas e era necessário um intermediador para que não só elaborasse a minuta daqueles contratos, como também, assessorar os envolvidos. Mesmo com a crise instalada, ainda havia espaço para negócios e investimentos. Américo sentia que sua vida havia começado a engrenar.

Soraide voltou a estudar. Preparava-se para um mestrado, já que não conseguia emprego em sua área na região. Os grandes fazendeiros haviam perdido muito dinheiro com a crise, o que causou uma onda de demissão na cidade. O trabalho estava escasso, mas isso não perturbou aquela mulher de olhos serenos, pele aveludada e uma timidez que mesmo amenizada pela convivência com Américo, ainda resistia ao tempo.

Estavam felizes. Aliás, estupidamente felizes. Insuportavelmente felizes. Era incrível. Não havia crise no mundo que conseguia afetar aquele casal.

Américo, com seu trabalho, já conseguia manter as despesas da casa e ainda ajudar seus pais, já idosos e sem forças para trabalhar. D. Zoca também era uma exímia e feliz trabalhadora. Não reclamava das adversidades da vida e sempre as encarava com muito humor e alegria. Seu marido, o “Seu Padim”, continuava a trabalhar no campo. Já não mais conseguia vender seus produtos como antigamente, mas também não deixava a família passar necessidades.

A empresa de minério que Américo trabalhava começou a exportar grande quantidade de bauxita e foi preciso aumentar a mão de obra. O comércio de Mundo Quadrado voltou a aquecer. Postos de trabalho voltaram a ser abertos e o dinheiro voltou a circular. Tudo, na contramão da crise que assolava todo o mundo.

Com o comércio em alta e dinheiro (muito) circulando, Américo e Soraide chegaram a conclusão de que nada é por acaso. Afinal, haviam deixado a cidade para estudar e não mais planejavam voltar. Tinham como idéia, conseguir um bom emprego na capital, já que competência e inteligência tinham de sobra. Mas como diria um famoso escritor tailandês, “a vida é uma caixinha de surpresas...”

Uma oportunidade de emprego surgiu numa região distante de Mundo Quadrado para Soraide. Empresas de reflorestamento precisavam de um recém formado na área agrônoma para início imediato, com um salário acima da média para os padrões da época. Soraide estava extasiada, porém, preocupada. Como seria uma relação a distância entre ela e Américo?

Aquele final de semana era decisivo para as futuras pretensões do casal. Soraide, com uma excelente proposta de emprego, porém, longe de Mundo Quadrado. Américo, já num alto cargo dentro da mineradora, também ganhava muito bem. O que decidir?

No decorrer da conversa, Soraide não se sente muito bem. Indisposta, pede para deitar um pouco. Américo, preocupado, chama o Dr. Silas, vizinho da família.

Muito atencioso, Dr. Silas examina Soraide meticulosamente e, num primeiro momento, receita apenas um chá de ervas medicinais, comum na região, para combater indisposições do tipo gastrointestinal.

A conversa em relação ao futuro do casal é adiada, mas a indisposição de Soraide preocupa a todos. Américo já não mais trabalhava, preocupada com a amada. Soraide estava de cama e Dr. Silas pediu exames mais apurados para detectar o motivo das queixas da filha da D. Zoca.

No início da noite de terça-feira, Dr. Silas bate à porta do casal. Américo abre a janela do quarto e avistou o médico que segurava um envelope branco na mão. “Américo, saiu o resultado dos exames da sua esposa!”

Ao abrir a porta, Américo estava tenso e preocupado. Dr. Silas o desarma. Abre um imenso sorriso e abraça Américo. “Soraide está grávida!”

19 de abril de 2010

Nada é por acaso


Parte 1/6

O Governo usava da repressão para conter aos que insistiam em gritar em favor da sociedade. A Europa passava por uma profunda transformação política/cultural. Ícones do mundo pop eram exaltados e endeusados, ao mesmo tempo em que a Igreja se debatia em uma série de problemas internos.

Nesse cenário, Américo e Soraide.

Américo era filho de imigrantes russos. Soraide, filha de agricultores de subsistência.

Na pacata cidade de Mundo Quadrado, no rico estado produtor de minério de ferro, a recém chegada da família de Américo causava desconfiança. Afinal, o que aqueles branquelos com sotaque estranho faziam ali?

Indiferentes aos comentários da população, Américo escolhe Mundo Quadrado para recomeçar sua vida, após fugir da perseguição do governo russo aos produtores de vodka de sua antiga região.

Soraide era tímida. Aliás, muito tímida. Era a caçula de 7 filhos da D. Zoca, conhecida quituteira da cidade. Muito alegre e receptiva, D. Zoca foi a primeira a cumprimentar os novos moradores.

Américo tinha pouco mais de 20 anos. Soraide, 18. Ele, de uma rara inteligência e muito articulador. Com essas características, não foi difícil fazer novas amizades. O idioma não foi um problema para ele. Américo tinha uma inteligência acima da média e ao chegar em Mundo Quadrado, já sabia ao menos se comunicar basicamente com todos.

Soraide também era muito inteligente. Teve seus estudos comprometidos já que tinha que auxiliar seus pais na lida rural. Os estudos ficaram um pouco de lado, mas não sua inteligência e sua beleza selvagem. E que beleza!

Muitos diziam que o trabalho de sol a sol e o contato com a terra bem como o trabalho diário na horta da família, fizeram com que Soraide desenvolvesse uma pele mais aveludada que as moças da região. Cremes, hidratantes e protetores solar eram artigos de luxo para a família, que se protegia do forte sol com o suco obtido da batida de abacate. Aquela mistura consistente, quase um creme, poderia ser a causa de tamanha beleza daquela garota.

Américo e Soraide não se conheciam. Estudavam na mesma escola e na mesma sala. Mas enquanto ele era o centralizador da turma, com inúmeras brincadeiras e muita participação em sala de aula, ela apenas observava.

A timidez de Soraide quase a deixou em apuros. Naquele ano, os professores optaram por avaliar seus alunos através de exames orais repentinos, sem aviso prévio. Não havia discussão quanto a competência de Soraide em ter o total e pleno conhecimento dos assuntos que ali eram debatidos. O problema era ela abrir a boca.

Américo, por outro lado, se deleitava com tais exames. Já dominando bem o idioma, Américo não tinha dificuldades em responder as questões. Tido como o melhor aluno da sala, ele passou a ser referência em vésperas de provas. Afinal, todos queriam saber qual era seu segredo.

Sabendo que poderia ser útil aos colegas e querendo aperfeiçoar seu idioma ainda mais, Américo pediu para que Luzinete organizasse um grupo de estudos que poderia ser realizado em sua própria residência, na Vila Peté, região situada às margens de Mundo Quadrado.

Luzinete era uma boa aluna. Esforçada e muito atenta às aulas. Mas tinha um baixo poder de concentração. Américo procurou Luzinete porque queria se cercar de pessoas que realmente quisessem estudar para as provas e sabia que, ao pedir para ela organizar um grupo de estudos, as pessoas por ela convidadas seriam as que efetivamente estariam interessadas em aprender.

Luzinete então opta por um pequeno grupo, composto de 5 pessoas. Além dela e Américo, Ruth (da rica família do fazendeiro Zé Pinga), Terêncio (humilde, filho de mãe prostituta com um desconhecido pai caminhoneiro) e Soraide.

E naquele final de tarde de outono, com o sol já parcialmente encoberto por nuvens e pássaros (muitos) cantando, como um fundo musical perfeito para o cenário, Américo e Soraide enfim se conhecem. Num grupo de estudos da cidade de Mundo Quadrado. E seus destinos se entrelaçam.

Um caminho cheio de surpresas estava por vir.